Não lembro do meu nascimento. Eu tinha pouca idade na ocasião. Aliás, nem sei se eu estava lá. Aos quatro anos, segundo o folclore familiar, troquei um caro carrinho em miniatura que ganhara de presente por um pastel com um vendedor de rua. O fato estabeleceu meu pouco jeito para o comércio e minhas prioridades para o resto da vida. Dos sete aos nove anos morei na Califórnia, onde meu pai lecionava na universidade e onde me notabilizei por massacrar japoneses. Era tempo de guerra e, influenciado pela feroz propaganda belicista da época, eu passava o dia de metralhadora em punho, matando japoneses imaginários. Morei de novo nos Estados Unidos dos 16 aos 20 e desta vez não matei ninguém. De volta ao Brasil, não me formei em nada porque senti que a escola não estava me preparando adequadamente para o que queria ser: vagabundo. Comecei a trabalhar, usando a palavra no sentido mais amplo, na Editora Globo, em Porto Alegre, primeiro no departamento de arte e depois na secretaria editorial, onde fiz algumas traduções. Em 62 decidi ir para Londres estudar cinema, depois de uma etapa no Rio para ganhar algum dinheiro. Não ganhei nenhum dinheiro no Rio. Ganhei uma mulher e uma filha, com as quais em vez de ir para Londres voltei para Porto Alegre, sem emprego e sem futuro aparente. Um amigo do meu pai me convidou para fazer um teste no jornal “Zero Hora”, como copidesque. Naquele tempo ainda não precisava o diploma, entrei como estagiário. Fiz de tudo na redação até que o principal cronista do jornal, o Sergio Jockyman, saiu e me convidaram a assinar uma coluna no lugar dele. E finalmente, aos trinta anos de idade, descobri uma vocação. Cronista. Há quem diga que é um sinônimo de vagabundo.

Sou de Libra, torcedor do Internacional (o que hoje em dia não recomenda muito o signo) e cardíaco, o que significa que não posso mais comer pastel na rua. Gosto de cinema, de livros e de música. Meu primeiro herói foi o Tesourinha. Quem se lembra do Tesourinha? Era ponta direita do Internacional e da seleção brasileira, chegou a jogar no Vasco, e não tem nada a ver com a música. Mas na infância eu queria ser o Tesourinha, depois, na adolescência, queria ser o Louis Armstrong. O que só me levou a concluir que tinha nascido na raça errada. Nunca cheguei perto de ser o Tesourinha mas quando fui morar nos Estados Unidos pela segunda vez tomei providências para ser o Louis Armstrong. Fui procurar um curso de música em Washington D. C. para aprender piston. Eles emprestavam o instrumento. Não tinham um piston no momento. Tinham um sax alto. Servia? Serviu. O meu projeto de vida seguinte – ser o Miles Davis – já começou prejudicado. Além da raça ser errada, o instrumento também era.

Aprendi o bastante para manejar as chaves e ler uma partitura, mas nunca cheguei a dominar o instrumento e esqueci o que sabia de música. Eu só queira mesmo fingir que era jazista, sozinho. No máximo me olhando no espelho. Mas em 60, já de volta em Porta Alegre, fui convidado a participar de um “conjunto melódico” que se iniciava, o Renato e seu Sexteto (que mais tarde, com nove figuras, chegou a ser o maior sexteto do mundo). Tocávamos em bailes de estudantes, era o tempo da bossa nova, da música italiana, do “fox”, e as vezes, quando a harmonia era propícia, eu improvisava, e era um passável Paul Desmond. Toquei só um ano com o conjunto do Renato (que depois se tornou um dos melhores do estado, ficou famoso sem mim, e debandou na década de 70) e passei 17 anos sem pegar o sax. Até que o grupo resolveu se reunir para relembrar os velhos tempos, e descobriu que muita gente tinha a mesma saudade. Resultado: voltamos a tocar em bailes, para o mesmo público da nossa juventude. Os que ainda podem andar, claro.

E hoje, quando o fôlego permite e os dedos obedecem, ainda ensaio umas corridas pela borda do tema. Um pouco como o Tesourinha quando acabou, melancolicamente, no Grêmio, confiando na benevolência do público. Mas é a realização de um sonho mesmo assim.

Luiz Fernando Veríssimo